quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Escrita à deriva II: paisagens do Programa Vocacional Luiz Claudio Cândido (in construção)

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Passo zero: De repente, salta de dentro de um livro palavras que juntas se agarram ao meu corpo. Elas dançam em mim como em um assalto, em um ato violento, e faz com que, momentaneamente, o tempo se eternize. Danço com estas palavras envoltas em mim até me deparar diante de um enorme despertador que me sacude e diz: “O ensaio não é a articulação de um pensamento apenas, mas de um pensamento como ponta de lança de uma existência empenhada. O ensaio vibra com a tensão daquela luta entre pensamento e vida, e entre vida e morte que Unamuno chamava de 'agonia'. Por isso, o ensaio não resolve, como o faz o tratado, o seu assunto. Não explica o seu assunto, e neste sentido não informa aos seus leitores. Pelo contrário, transforma o seu assunto em enigma. Implica­-se no assunto, e implica nele seus leitores. Este é o seu atrativo.” Eis­-me aqui, disposto a (me) ensaiar. Ponho­me à deriva no ato da escrita que será tecida por meio do meu caminhar, deslocar por algumas paisagens do Programa Vocacional.

Primeira paisagem, de onde parto, foco aberto, o Programa Vocacional: 

O Programa Vocacional é constituído, atualmente, por 5 projetos distintos, a saber, Vocacional Teatro, Vocacional Dança, Vocacional Música, Vocacional Artes Visuais e Vocacional Artes Integradas. Embora sejam todos regidos pelo material norteador cada um destes projetos, de acordo com seu contexto e experiências históricas, tem uma lida sui generis com este, eclodindo em cada um deles um processo de sigularização. Tal processo de singularização gera uma multiplicidade de olhares sobre o Programa Vocacional, que passa a ser visto não como um todo homogêneo, mas sim heterogêneo, composto por perspectivas distintas que ora são consonantes ora dissonantes entre si. De braços dados com Deleuze e Guattari, atribuirei ao Programa Vocacional o epíteto de esquizofrênico que, sob a minha perspectiva de andarilho, de flaneur, não há conotação negativa alguma, porque "O esquizofrênico se mantém no limite do capitalismo: ele é a tendência desenvolvida, o subproduto, o proletário e o anjo exterminador. Ele embaralha todos os códigos e carrega os fluxos decodificados do desejo. O real flui.Os dois aspectos do processo se reúnem: o processo metafísico que nos põe em contato com o 'demoníaco' na natureza ou no coração da terra, o processo histórico da produção social que restitui às máquinas desejantes uma autonomia em relação à máquina social desterritorializada2”. Neste meu perpassar por esta primeira paisagem observei que os artistas (coordenadores e AOs) reagem diferentemente diante da esquizofrenia. Assim, a mesmíssima frase, com construção gramatical idêntica, que muitas vezes circula em conversas, reflexões, etc., a saber, “O Programa Vocacional é esquizofrênico'', possui sentidos completamente distintos para uns e para outros. A partir desta minha observação e para conseguir alinhavar meus escritos vagueantes se fez necessário para mim criar uma tipologia, momentânea, inconclusa, somente com a intenção de conseguir compartilhar o que vejo neste deslocamento: dois tipo, o primeiro corresponde àquele que vê a esquizofrenia como reativa e o segundo como afirmativa. Se, em uma licença poética, pudéssemos antropomorfizar o Programa Vocacional de sua boca seria proferida uma multiplicidade de discursos diferentes e, às vezes, divergentes entre si. Esta boca ''Torre de Babel contemporânea'', na qual ''cada um diz uma coisa'', gera um incômodo para o primeiro tipo porque cada um dizer uma coisa é um problema, para ele. É necessário intervir para que haja uma unidade discursiva, identitária: aqui a diferença é vista quase sempre como negativa, o mal, e pretende-­se a sua supressão (ou confinamento). Para ele a esquizofrenia é vista, metaforicamente, como uma patologia, um desvio da normalidade, deve ser diagnosticada, tratada, remediada. Em geral, este tipo busca a afirmação cada vez maior da identidade/essência de cada linguagem/projeto, mas será que esta tentativa de preservação da identidade não acaba gerando um isolamento excludente ou uma ''xenofobia'', evitando o contato com os demais projetos, que são vistos sob as lentes sartreana como ''o inferno são os outros''? O ''outro'' aqui não seria visto como um ''perigo'' à manutenção desta identidade? Um argumento corrente para este tipo é a defesa da objetividade e pragmatismo, ou seja, se não houvesse tanta discussão, em virtude das múltiplas vozes que se manifestam, seríamos mais eficientes. Então, calar as vozes dissonantes ou ao menos minimizá-­las ao quase silêncio, de maneira sutil ou explícita, é um ponto fundamental da estratégia de atuação. Primam pela síntese e vivem em busca de um líder, um pastor, alguém que os guie. Para o segundo tipo, que podemos chamar de não ­reativos, a polifonia discursiva, as várias perspectivas concomitantes, não geram um mal estar, um incômodo, mas ao contrário fomenta o embate de ideias. Sendo assim, não busca a supressão de vozes dissonantes, mas o embate entre elas, o embate das ideias. A esquizofrenia aqui tende a ser vista como algo potencializador porque busca agenciar múltiplos pontos de vistas, criando sentidos às vezes inusuais. Nestes casos os processos de subjetivação são mais evidentes, não se tem o foco absoluto na objetividade, nem descamba para uma subjetividade absoluta, mas trafega entre os dois. O ato de pensar, discutir, refletir, colocar em xeque o senso comum parece ser uma atitude deste tipo que tende a buscar um maior diálogo entre os projetos e linguagens artísticas e as fronteiras entre elas tornam-­se mais tênues. Buscam enveredar pela seara da experimentação, do risco, do impossível. Para eles a heterogeneidade não é um problema, assim como a noção de identidade perde seu sentido, uma vez que não se pensa em um ''eu fixo'', mas um ''eu em constante transformação'', sendo reinventado a cada encontro, embora guarde uma tendência de si. Primam pelo transbordamento e não buscam um salvador, um líder ­ talvez, lideranças móveis, temporárias, que não se cristalizam em uma única figura. Evidentemente que estes dois tipos são extremos de uma reta que possui um leque de inúmeras nuances entre eles.

Segunda paisagem, fechando um pouco mais o foco, o Projeto Vocacional Teatro:

Adentro agora a paisagem dos coordenadores do Vocacional Teatro, que se encontram semanalmente na galeria Olido. Ela é composta por dez coordenadores artístico-­pedagógicos de equipes, cada um atua em uma microrregião da cidade, e um coordenador de Projeto com pensamentos e perspectivas distintos em relação ao Programa Vocacional. Em outras palavras, se levarmos em consideração somente os coordenadores do Projeto Vocacional Teatro este não é um todo homogêneo, um coro uníssono de vozes e pensamentos em comum. Além disso, nele a tipologia descrita acima permanece e os dois tipos coexistem lado a lado. Qualquer tentativa de homogenização esta fadada a generalização, muitas vezes realizada às custas da necessidade de síntese e representatividade, que acaba por abafar, desprezar outras vozes que coexistem no mesmo projeto. Mas por que embora seja heterogêneo haja uma persistência em se afirmar uma homogeneidade? A quem interessa que o Projeto Vocacional Teatro seja visto como homogêneo? Será que a função coordenador de projeto, cativa do conceito de representação, consegue ''representar a voz'' dos coordenadores de equipe e,
consequentemente, do Projeto Vocacional Teatro? As reflexões sobre os processos criativos instaurados nas orientações aos artistas vocacionados não conseguem adentrar esta paisagem e nem tampouco os processos de investigação das equipes. Em geral, aqui nos deparamos com informes e demandas institucionais, reclamações sobre a estrutura do Programa Vocacional e estratégias de mudança da mesma. Embora sejamos regidos pelo material norteador há uma tensão entre este e a prática encontrada aqui: a ignorância não é bem vinda e avançamos, pouco a pouco, rumo a um pragmatismo, calcado na eficiência e objetividade.
Pude observar a presença de um discurso nesta coletividade que afirma a grande dificuldade desta em se relacionar com os demais projetos do Programa Vocacional. Pergunto-­me: será que ela não está criando uma situação de falta de abertura ao diálogo, um fechamento, claustrofóbico, em si mesmo? Será que os 13 anos de existência do Projeto Vocacional Teatro, nascedouro do Programa Vocacional, se tornou um fardo por demais pesado e a vasta acumulação de experiência no campo artístico-pedagógico, bastante alinhado com as proposições do retorno do teatro de grupo de meados da década de 1990, não foram potentes o sufientes para escapar de uma cristalização deste projeto, que beira a insularidade ou autismo, nos momentos mais agudos? Embora nesta coletividade dos coordenadores do Vocacional Teatro sejam tecidos olhares bastante críticos em relação aos demais projetos, falta-­lhe fôlego para lançar olhares para simesmo e problematizar suas escolhas e atitudes e apontar suas contradições/incoerências.

Paisagens periféricas, fechando ainda mais o foco, a equipe leste 3/Vocacional Teatro:

Aqui espacialmente saímos do centro, da galeria Olido, onde são realizados os encontros das paisagens anteriormente descritas e rumamos para a periferia da cidade: nossas reuniões de pesquisa­-ação, vulgo, reunião de equipe, são realizadas, semanalmente, no extremo leste, em Guaianases, no CEU Jambeiro. Na equipe leste 3/Vocacional Teatro, sob minha coordenação, também reina a mesma heterogeneidade presente nas coletividades anteriores e os mesmos tipos supracitados: os AOs tem experiências distintas no Programa Vocacional e cada um tem uma relação com nossas reuniões de pesquisa-­ação.
Nesta paisagem encontrei uma palavra/­temática recorrente que, pelas inquietações que suscitava na coletividade que a compunha, assumiu os contornos de ''pesquisa da equipe'', a saber, interferência. O que seria ''interferência'' para esta coletividade? Longe de uma precisão conceitual definida a priori e perseguida ''checklisticamente'' a posteriori, o sentido da interferência foi se construindo, paulatinamente, ao longo dos processos criativos orientados e da dinâmica organizacional (e processual) da equipe. Como ponto de partida inicial a ''interferência'' pode ser vista como um desdobramento de uma investigação realizada pela equipe Leste 3/Vocacional Teatro, de 2013, sobre a relação entre sistema aberto e a prática de orientação (na esfera micro) e a estrutura do Programa Vocacional (naesfera macro). Fazendo uso de um imaginário da informática se pensou os artistas vocacionados como co­programadores do ''Programa'' Vocacional que, diferentemente do sistema operacional Windowns, comportaria a criação de várias versões porque teria ''os códigos abertos'' e, portanto, passíveis de reprogramação. Em 2014, com uma ''nova equipe'' esta ''pesquisa'' sofreu uma mudança porque deveria ser levado em consideração o olhar dos novos integrantes. Desta tensão entre continuidade e início, paradoxo que o Programa Vocacional vive ano após ano (ao mesmo tempo é continuidade e início, numa junção de opostos aparentemente excludente – no senso comum ou algo está iniciando ou está em continuidade), da necessidade de abertura de diálogo, do compartilhamento de um saber construído a partir de uma experiência daqueles que permaneciam na equipe leste 3, do(s) ano(s) anterior(es), aliada as novas perspectivas possíveis, oriundas dos novos integrantes da equipe 3 a ideia de ''interferência'' surgiu. Arrisco-­me a inferir que a investigação sobre a ''interferência'' teve dois pontos distintos durante a trajetória da equipe leste 3, que muitas vezes se imbricaram um no outro: 1) endógena ­ a potencialização da troca entre os integrantes de uma coletividade, possibilitando tanto a descentralização do poder quanto o deslocamento por perspectivas distintas – o que provocou a tessitura de planejamentos dos encontros de orientação/coordenação porosos, que comportassem o aqui ­agora processual, inexoravelmente e 2) exógena ­ o intercâmbio entre coletividades distintas, com práticas e estéticas singulares, visando a complexificação da percepção sobre as mesmas e a prática de devorar e ser devorado, num ato artístico-pedagógico antropofágico.
Sob minhas lentes de caminhante, considero que uma prática instaurada nesta paisagem poderia também ser considerada interferência: a visita às orientações entre os AOs da equipe (e, em alguns casos, de outras equipes e de outras linguagens). Nestas visitas o AO tinha a possibilidade de acompanhar a orientação de outro AO, vê-­lo no ato da criação da orientação, in locus, em um outro contexto e, com isso, conseguia lançar olhares para sua prática e do outro, num processo de alteridade: não se buscava valorar, mas encontrar as diferenças entre as práticas artístico-­pedagógicas. Ao lançar olhares para a prática do outro, o olhar do AO podia expandir e retornar para a sua, num movimento de mão dupla. Quais são as questões que este AO formula ao realizar esta visita tanto para si quanto para o outro? Além disso, neste momento de visita entre AOs a aproximação entre eles, a possibilidade de trocas para além daquelas realizadas nas reuniões de equipe, tenderam a fortalecer os laços da parceria e as reflexões artístico-­pedagógicas sobre os processos criativos em andamento, elaboração de possíveis ações futuras, etc. Em algumas destas visitas o coordenador da equipe foi/esteve junto com o AO visitante e no momento da conversa sobre a orientação ambos podiam cotejar suas observações, ampliando as perspectivas. Como foi dito acima estas visitas não se restringiram somente entre os AOs da equipe Leste 3/Vocacional Teatro, mas aos AOs de outros projetos do Programa Vocacional4. Se há uma dificuldade de abertura no Projeto Vocacional Teatro, na paisagem dos coordenadores, o mesmo não podemos afirmar em relação aos AOs do Vocacional Teatro/Leste 3: nos equipamentos eles tendem a estabelecer um diálogo maior entre os projetos do Programa Vocacional, desde que seja uma necessidade dos processos criativos
orientados. Pude observar que esta troca entre os AOs do Programa Vocacional fomenta o trânsito dos artistas vocacionados pelos projetos que atuam em um mesmo equipamento e também a ampliação do olhar deles sobre o seu processo criativo, meios e modos de produção. Estas parcerias fomentam também ao AO e coordenador de equipe a percepção das singularidades de cada Projeto do Programa Vocacional e, consequentemente, a abertura dos canais de comunicação entre eles.
Nesta minha passagem por esta paisagem pude ver que, grosso modo, nos encontros semanais com a equipe Leste 3/Vocacional Teatro se buscou a instauração de uma dinâmica de feitura de ensaios para refletir sobre as orientações dos processos criativos dos artistas vocacionados e as práticas artístico­pedagógicas. Para isso, foi adotado como um dos procedimentos que alimentou os encontros semanais a materialização em algum suporte (textual, videográfico, cênico, fotográfico, performativo, verbal, etc) das experiências que os processos criativos emancipatórios geram. Nesta coletividade o ensaio não se pretendeu ser um ponto final, uma ''resposta'', uma ''solução'', a conclusão de uma investigação, mas um tatear sobre a experiência de orientação, uma possibilidade de enveredar pela tentativa de coletivização de uma experiência singular, um entre, um meio para que o pensamento escape da fixadez, do senso comum, da perspectiva única, superficial: foi uma tentativa de experimentação do pensamento, do pensar e se pensar. Ele não se pretendeu somente à produção de uma materialidade, mas a instauração de uma atitude ensaística: como se lançar nas orientações/coordenações no desconhecido, na experimentação do rabiscar, riscar, escrever, apagar, reescrever, rasurar, voltar a escrever, voltar a rasurar e apagar e escrever novamente e assim sucessivamente e ad infinitum? De braços dados com esta ''atitude ensaística'' se fomentou uma fala do AO não constrangida nem à eficiência, ao acerto, ao preciso, ao objetivo (e nem a fala ''burocrática'' ou de ''lamentação''), mas sim prenhe de ''posicionamento/atitude'' artístico, pedagógico e político, de artistas pesquisadores, investigadores de uma prática que refuta a relação professor­-aluno nos moldes de uma pedagogia tradicional (ou, mais radicalmente ainda, que refuta uma prática
de ''formação'' dos artistas vocacionados). Com isso, a reunião de pesquisa­-ação não foi vista como um espaço de solução, mas de fomento de problemas, que assumem para si contornos artístico­pedagógicos: alimentados pelas proposições do mestre ignorante, a partir da obra de Jacques Ranciere, ela não foi um espaço para ‘’clarificar’’, ‘’iluminar’’, para que o coordenador de equipe ''ensine'' o AO, mas sim para que pensem coletivamente os problemas, para lançar olhares sobre o que ambos desconhecem, ignoram. Ela se propôs uma zona de interferências, de fluxo que comporta o ir e vir das questões da Equipe e das orientações, de lá para cá e de cá para lá, num movimento ininterrupto, e de contaminação mútua, esquizofrênica, dos artistas orientadores que perdem sua identidade fixa e se deixam “ser muitos” no ato de sua orientação ao ‘ouvir outras vozes’ que o compõe – vozes estas que foram ouvidas durante as reuniões de pesquisa-­ação a partir dos estudos e reflexões sobre os processos criativos em andamento. Com esta ''prática ensaística'' pudemos observar que ao lançarmos olhares para um ensaio que prima pela singularidade do processo vivenciado por um AO/coordenador específico, acabávamos lançando olhares para as demais orientações: olhar para o outro se desdobrou em olhar para si, em um processo de alteridade. Assim, as interferências poderiam se dar em um plano mais epidérmico, embora sutil: ao se deparar com um ensaio­performático, como foi o da AO Lívia Piccolo, um AO que apresentou um ensaio ''menos performático'' podia rever sua forma de apresentação e se problematizar (e vice-­e­-versa), por exemplo. Longe de critérios de certo ou errado, melhor ou pior, o contato com o outro, com o diferente, fez com que um ''movimento autorreflexivo'' se instaurasse. E, paulatinamente, um ensaio ''apresentado'' por um AO acabou sendo desdobrado no ensaio subsequente ''apresentado'' por um outro AO, por exemplo, a multifocalidade/polifonia do ensaio do AO Herbert Henrique, desdobrou-­se no ensaio ''nuvem de tags/construção de uma rede aberta'' do AO Leandro Hoehne. Um outro caminho aberto, concomitantemente, se deu por meio do ensaio-­procedimento-­visita dos artistas vocacionados do CEU Jambeiro à reunião de equipe da leste 3/Vocacional Teatro, proposto pelo AO Danilo Caputto, que se desdobrou tanto nos procedimentos criativos das coletividades orientadas na BP Cora Coralina (AO Priscila Carbone) e na CC Raul Seixas (AO Lívia Piccolo), quanto na presença dos artistas vocacionados em nossas reuniões de equipe para a construção da ação­interferência-­festa na qual estariam presentes todas as coletividades orientadas pela nossa equipe (realizada no dia 02/11/2014, no CC Raul Seixas, da qual falarei um pouco mais a frente).
Finda a etapa de ''apresentações dos ensaios'' a escolha feita por esta coletividade não foi a feitura de ''novos ensaios'' mas sim potencializar as investigações sobre a interferência ''em campo'', na prática propriamente dita, diretamente com os artistas vocacionados, ou seja, investigar como se daria a interferência entre os coletivos orientados. Neste momento foram intensificadas as trocas entre as turmas: 1) BP Cora Coralina, CEU Jambeiro e CC Raul Seixas, 2) CEU Jambeiro e CEU Inácio Monteiro, 3) CEU Água Azul e CEU Lajeado. (Antecedendo este momento, tivemos uma troca ''prática'' entre a BP Cora Coralina e a CC Raul Seixas e outra entre estes para assistirem ao filme­documentário sobre a Pina Baush, dirigido por Win Wenders). Este ''outro'' momento de investigação sobre a interferência (exógena), agora entre os artistas vocacionados, desencadeou dois encontros­interferências no qual tivemos a presença de todos os coletivos orientados pela equipe Leste 3, a saber, a ida à Bienal de Artes de São Paulo e a ação-­festa, realizada na CC Raul Seixas. Nesta última o objetivo não foi a apresentação de uma materialidade elaborada ao longo do ano, mas a instauração de ''um espaço de fermentação'' no qual a junção e trocas entre os artistas vocacionados fomentaram a eclosão de materiais efêmeros que pudessem vir a interferir nos seus processos criativos orientados. Não se tratou de uma ação­-apresentação, mas uma ação-­encontro­-experiência na qual cada artistas vocacionado teve uma relação análoga àquela da orientação, embora num tempo de duração dilatado e num espaço com outras configurações. Para dar conta do planejamento desta ação-­interferência-­festa a coletividade equipe Leste 3/Vocacional Teatro, interinamente, propôs/chegou a uma forma de organização de seus encontros/reuniões: na primeira parte (1 hora) dedicávamos à informes e preparação da segunda parte do encontro; na segunda parte (2 horas) à elaboração da ação propriamente dita na qual tivemos a participação dos artistas vocacionados.
Em um primeiro sobrevoo estes encontros-­interferências se desdobraram numa experiência de ''migração'' dos artistas vocacionados para outros equipamentos ­ para além do ''seu de origem'': alguns vocacionados do CEU Jambeiro visitaram (e acompanharam as orientações) a BP Cora Coralina; do CEU Água Azul visitaram o CFC Cid. Tiradentes; os artistas vocacionados do CFC Cid. Tiradentes e CEU Inácio Monteiro foram assistir ao ensaio aberto do CEU Água Azul; e os artistas vocacionados do CEU Jambeiro, CC Raul Seixas e CFC Cidade Tiradentes foram assistir à Mostra do CEU Inácio Monteiro (do Projeto Vocacional Teatro). Além disso, fez eclodir uma ''rede'' entre os artistas vocacionados de equipamentosdistintos, por meio de um grupo de whats app, na qual a comunicação entre eles não está na ''jurisdição e dependência'' do AO e/ou da equipe Leste 3/Vocacional Teatro.
Ainda nesta paisagem pude observar que a organização da reunião de equipe não foi dada a priori, mas construída coletivamente, passo a passo, assumindo um aspecto processual e no qual cada um foi incitado a ser corresponsável por ela, tanto na administração do tempo quanto na escolha das temáticas a serem discutidas. Em geral, nas reuniões de equipe uma pauta é levantada pelo coordenador e acrescida de outras oriundas dos AOs. Embora a pauta esteja aberta ela está majoritariamente ''nas mãos'' do coordenador que, assim, assume o poder de fala e de orquestração das falas dos presentes: muitas vezes ter o poderio sobre as falas dos demais, sobre a possibilidade destas virem à tona ou não, pode tornar ''maquiadas'' as falas que eclodem sobre estas regras, falas que reafirmam as proferidas pelo orquestrador não por compartilhamento das ideias mas por percepção das regras do jogo, daquilo que ''se deve ser dito'' e ''como se deve dizer''. Com isso, o sentido não é construído coletivamente, mas de acordo com a perspectiva do coordenador, que se torna ''A'' perspectiva – ‘’verdadeira’’ e, portanto, ‘’inquestionável’’. Visando tentar escapar deste ranço que a função pode exercer sobre o coletivo (abafando as vozes e apaziguando os conflitos de ideias, coibindo que as coletividades se tornem espaços de reflexões) e na tentativa de enveredar pela construção coletiva de sentido foi proposto pelo coordenador da equipe (eu) que a construção da pauta fosse mais ''aberta'' (ainda), com uma ''interferência'' maior das perspectivas dos AOs. Foi assim que surgiram as ''fichinhas'' ­ que povoaram insistentemente as mesas de reuniões desta coletividade, por um momento. No início de cada reunião pedaços retangulares de papel (as ''fichinhas'') eram distribuídos a cada um dos presentes e estes escreviam neles as pautas que lhe ''moviam'', que acreditavam ser ''necessárias àquela coletividade'' e, em seguida, dispunham-­nas na mesa. Qualquer um dos presentes poderia dar o ''start'' da reunião ''puxando'' uma fichinha e, a partir de então, todos
poderiam continuar esta dinâmica, ''puxando'' uma outra fichinha quando ou julgassem ''esgotado'' o assunto ou a relacionasse com o assunto presente em uma outra. Tal procedimento evidenciou que não bastava somente ''estar no espaço'', como burocraticamente poderia ser a única exigência contratual, mas ''como estar''. A reunião não sendo per si um espaço de interferência somente se tornaria isto se os presentes se disponibilizassem para tanto, ou seja, se se lançassem na construção de uma presença atitudinal, um corpo com disponibilidade para a escuta, para a troca, para provocar e ser provocado, etc. Perguntas pululam: Como cada um contribui com o processo do outro e como o outro contribui com o meu processo? Qual o papel de cada um dentro da reunião de equipe? Como cada um contribui com ela? Estas fichinhas-­procedimento, sob minha perspectiva, guardam um duplo sentido: memória e pistas. Memórias do trajeto seguido pela equipe e pistas que indicavam possíveis conexões entre assuntos aparentemente não compatíveis àqueles que não tivessem vivenciado o nosso coletivo – reafirmando que os sentidos não estão dados a priori, mas são construídos por esta coletividade. Assim, a junção de uma fichinha escrita FUNDAÇÃO e outra escrita ESPETÁCULO e mais uma escrita MATERIALIDADE ENSAIO se tornaria um hieróglifo indecifrável para qualquer outro que não estivesse minimamente contextualizado. Para dar algum sentido a esta junção inusitada seria necessária a fala­ experiência de quem teceu a construção deste sentido. Estas ''fichinhas'' (temáticas, fragmentos de pautas) foram ora usadas ora abandonadas ora revisitadas ora resignificadas ora improdutivas ora desnecessárias.
A pesquisa sobre ''interferência'' na prática artístico-­pedagógica desembocou em uma seara que precisa ser explorada, desbravada ainda: o acaso nos processos criativos (e de orientação). A partir do momento em que ''abrimos o sistema'' os acasos não são mais ''desconsiderados'', eles interferem na ''programação do encontro''. Novas perguntas eclodem: Como o acaso atua nos processos criativos e nas orientações? Como lidar com o acaso? Parece-­me que o ''acaso'' gera um certo constrangimento pela sua natureza ''espontânea e indomável'': se é ''por acaso'' que algo aconteceu isso não está ''nas mãos'' do AO, então, não foi sua intenção, não houve um planejamento para que tal coisa acontecesse: o AO não é o sujeito da ação. Não sendo o sujeito da ação o processo criativo dos artistas vocacionados ''escapam'' de suas mãos e, com isso, ele pode não ''domá-­lo'', ''regrá-­lo'', ''discipliná-­lo'', ''contê-­lo'', ''educá­-lo''. Sem saber para onde o processo criativo vai e como lidar com ele terá que lidar com este no aqui-­agora, com aquele acontecimento singular naquele tempo-­espaço específico. Nestes momentos a relação de parceria/aliança com os artistas vocacionados da coletividade orientada é de fundamental importância porque o AO como um cego, vai tatear um caminho, uma possibilidade, em conjunto com os artistas vocacionados – adentra-se no território da experimentação, da invenção de procedimentos, de modos de produção, etc. Ainda, com a interferência a ''aceitação'' da demolição dos planejamentos dos encontros de orientação/coordenação, não sem sofrimento em alguns ou/e em alguns momentos, fez­-se presente àqueles que habitam estas paisagens. Demolição não quer dizer aqui não realização do planejamento, ao contrário, este é pensado/edificado minuciosamente, quase exaustivamente, mas consente-se deixá-­lo aberto às singularidades do encontro propriamente dito. Com isso, muitas vezes o AO e coordenador são catapultados para o campo da ''reinvenção'' no aqui-­agora, da costura do encontro no próprio encontro, da ação na própria ação, atribuindo a eles o epíteto de artesãos e, consequentemente, ao encontro um aspecto artesanal, único e intransferível.
Por fim, pude observar nesta paisagem um efeito pororoca, o cruzamento (estrondoso) de águas oriundas de naturezas diferentes: uma dos processos criativos dos artistas vocacionados e outra das demandas institucionais do Programa Vocacional. Há, portanto, um braço de ferro sisífico entre o micro e o macro, indissolúvel, insolúvel, ad eternum, e no qual a vigilância constante deve ser mantida para que a primeira não soçobre em relação a segunda, caso o coordenador de equipe não queira assumir para si o epíteto de ''mensageiro/Hermes da galeria Olido'' e ver o desmoronamento e soterramento das reflexões sobre os processos criativos em andamento na equipe sob sua coordenação. 

Paisagem micro, foco maximamente fechado, as orientações dos processos criativos:

Nesta paisagem o elemento fundamental é o processo criativo dos artistas vocacionados, alicerçado pela prática artístico-­pedagógica proposta pelo material norteador. Em cada grupo ou turma orientada na equipe Leste 3/vocacional Teatro reina a heterogeneidade: as característica e contextos específicos tornam múltiplos os meios e modos de produção e as formas e conteúdos das materialidades artísticas produzidas. Assim, cada AO tem diante de si o desafio de lidar com a instauração de processos criativos que, muitas vezes, fogem/escapam daqueles que a prática dele contempla plenamente. Sem mesuras os processos criativos dos artistas vocacionados derrubam os monumentos erguidos pela formação do AO: aqueles preceitos que eram caros e inestimáveis, imprescindíveis a este para a realização de uma experiência artística soçobram e força com que ele descubra junto com aqueles o trajeto a ser percorrido e o que dele resultará. Faz-­se imprescindível uma atitude ensaística do AO, que terá que rever sua prática constantemente, acertando, errando, avançando, recuando, experimentando os desafios/­perguntas que cada processo criativo lança. Não que a tradição teatral, com sua história erigida, não tenha espaço nestes processos criativos, mas nem sempre ela se mostra suficiente para abarcar ''a voz'' dos artistas vocacionados. Ao enveredar pela seara da construção de materialidades estéticas que dialoguem diretamente com as inquietações dos artistas vocacionados ­ inquietações estas que vão eclodindo, paulatinamente, por meio de um tatear constante e que vão dando forma àquilo que eles pretendem ''falar'' (ou simplesmente falam)­, os meios e modos de produção comumente conhecidos no meio teatral sofrem um processo de desnaturalização e cada coletividade vai confeccionando, coletivamente, a sua forma de organização. Nesta paisagem podemos ver irromper novas formas de relação, de existência, nas quais a produção de sentido não está mais centralizada nas mãos de um (pseudo)detentor do saber, em um mestre que lança perguntas socráticas delimitando o campo das respostas possíveis.
Nela somos pegos pelo colarinho, muitas vezes, de súbito, e ficamos cara a cara com tudo aquilo que a experiência artística tem de mais temível e sublime: o impossível, o indizível, o imponderável.

NOTAS: 

1FLUSSER, Vilém. Ficções filosóficas. São Paulo: EDUSP, 1998, p. 96.
2DELEUZE e GUATTARI, O Anti­Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago, 1976 , p. 53-­54.
3 Além disso, embora alguns integrantes desta coletividade já tivessem uma experiência no Programa Vocacional, que lhe atribuíam uma certa perspectiva histórica deste, havia uma atenção por parte deles em não torná-­la soberana e ''impositiva'' àqueles que eram ingressantes.
4 sobretudo do Vocacional Dança, equipe Leste 3, sob a coordenação de Nininha Araújo.

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terça-feira, 16 de dezembro de 2014

DE MUITOS ENSAIOS, APENAS UM MONTE DE TÍTULOS E UM ROTEIRO PARA NOVOS ENSAIOS

Durante o ano de 2014 muitos ensaios aconteceram, surgiram e desapareceram. Ficaram os assuntos, os possíveis títulos. As ações práticas experenciadas durante a edição 2014 do Programa Vocacional foram impulsos para muitos pensamentos, que em síntese, formariam uma boa raiz para um ensaio, para uma forma a ser compartilhada.
Este ensaio, aquilo que ainda está por ser mexido, vasculhado, terá como princípio a exposição de formas inacabadas do pensamento impulsionado pela prática e pela urgência sobre questões do Projeto Teatro.
No início farei a exposição esquemática de diversos pontos de partida que foram discutidos nos encontros, durante as reuniões de equipe, bastante intensas por sinal, mas que não pude desenvolvê-los em forma de compartilhamento para além do impulso inicial. Neste ensaio único também constará outro impulso, o princípio de uma dramaturgia escrita durante os encontros no CEU Três Lagos. Ou seja, como num ensaio, teremos o caos e a construção de alguns sentidos.

POSSÍVEIS ENSAIOS

“Como promover a discussão sobre o Teatro de Grupo, praticado na cidade, observado dentro do Programa Vocacional, para além dos fetiches sobre esta forma de produção.”

“Desenvolver o pensamento sobre a política cultural da Cidade em relação ao Programa Vocacional. Como a falta de um pensamento macro para cultura tem isolado e ou condicionado o Programa a ser uma forma de ação individualizada.”

“O processo e o sentido ou de como a falta de sentido pode gerar processos pastiches”

“Da importância da articulação dos signos da vida para a articulação dos signos do teatro ou não sou água de côco, mas preciso ficar por dentro”

“Peças teatrais, Uai, why not?”

“Ao substituir uma Artista Orientadora no CEU Navegantes, vi um grupo de jovens vivendo teatro na rua, brincando de fazer teatro nas calçadas. O teatro não era norma, era vida”

“Humbalada, ta aí a resposta sobre o Programa Vocacional”

“Diz o morador do Grajaú, que estava bêbado, aparentemente feliz ao lado de sua suposta namorada, de igual estado de embriaguês: “O teatro lá dentro (referindo-se ao CEU Três Lagos enquanto via uma apresentação do Grupo Enchendo Laje na rua) acabou, tá morto. O teatro agora é aqui fora, aquela lá (de dentro) já morreu.”

DA IMPORTÂNCIA DE CRIAR SENTIDOS

Neste ensaio resolvi publicar uma dramaturgia em processo, fruto de uma longa discussão e acúmulo. Este acúmulo foi recheado por um processo em que o teatro era meio para a expressão e esta expressão ganhava em cada encontro, contornos de vida, das contradições das vidas presentes. E estes contornos foram dando régua e compasso para o teatro que se misturou às vidas.
Publico  esta dramaturgia, pois ela foi apresentada em forma de ensaio, na Mostra Vocacional e é apenas ponto de partida para a continuidade dos envolvidos que continuarão o processo. Este exercício é em si um movimento inicial para criar sentidos ao fazer teatral.





ROTEIRO PARA ENCENAÇÃO
TEATRO VOCACIONAL – 2014

Este roteiro foi construído por meio de títulos de cenas improvisadas durante os encontros, indicações de jogos, livre adaptação de “Os Três Porquinhos” e duas cenas criadas por meio da pesquisa feita acerca do tema: “estruturas de poder”.

1 – QUANDO O PÚBLICO VAI PARA A PRIVADA
Os atores e atrizes recebem o público na portaria do CEU (ou em outra portaria, caso o espaço seja diferente). Alguns interpretam o público entrando no espaço e mostrando documento para isso.  O jogo cênico é modificado quando uma das pessoas não tem documentos para serem mostrados. Uma discussão sobre a entrada no espaço público é travada entre um dos seguranças e a pessoa que não tem documentos. Um dos seguranças sai do espaço e ao tentar retornar o outro segurança lhe pede o RG. Os documentos do segurança que reivindica a entrada estão dentro do CEU. Cumprindo a regra, o segurança fica de fora.
Sugestão para término da cena:
Segurança 1 – Isso é um absurdo!
Todos – de forma descompassada- é um absurdo.

Todos os materiais usados para a composição deste exercício cênico passarão pela roleta. Para deixar o gesto da cena evidente sugere-se que, enquanto a discussão é travada, que uma das atrizes entre com sua boneca, que será utilizada em cena posteriormente, e apresente dois documentos, o dela e o da boneca.


2 -  TRÊS PORQUINHOS OU FOCINHEIRA TRANSFORMA LOBO EM CORDEIRO

MEGAFONE – Era uma vez uma metrópole. Era outra vez uma terra. Era uma vez um negócio. Era outra vez o valor da terra. Era uma vez uma vez alguns porcos donos da terra. Era outra vez muitos lobos ocupando a terra. Era uma vez uma história. Era outra vez outra história.
Ao final da narração público e atores estão misturados como parte da ocupação. Vê-se uma faixa, feita de pano, nela está escrito : “Alcateia”.
Roupas penduradas em varais são vistas. Nelas estão vários dados escritos que foram coletados durante a pesquisa sobre moradia.

LOBO 1  – Fala Lobaida. Todos uivam. Hoje faz um mês que nossa ocupação aconteceu. E todo mundo sabe o suor que doou pra que hoje a gente pudesse tá aqui. Então gente, chega de medo...
LOBO 2 –É isso mesmo! Vamos mostrar que aqui não tem lobo mau não. Aqui todo mundo é trabalhador, certo?
Este trecho da cena deve ser improvisado. Sugere-se um clima festivo de harmonia. Este clima é interrompido pela chegada de um primeiro agente, um porquinho. A caracterização se dá por cada porco segurar um porquinho na mão. Este primeiro porquinho faz parte de um programa social.
PORQUINHOsegurando um porco na mão – Com licença, com licença. Eu faço parte de um Programa  da Prefeitura e estou fazendo o cadastro de todas as famílias de Lobos a fim de disponibilizar o acesso aos bens oferecidos pelo município: hospital, vale leite, matrícula em creche, etc. Vocês poderiam me responder algumas perguntas?
Os lobos se olham
LOBO 3 – Mas você é um porco e nós somos lobos.
PORQUINHO – Se aceitarem responder algumas perguntas vocês terão diretos iguais aos porcos. Para a prefeitura não existem porcos ou lobos. Existem procura algo existem....pega uma focinheira e mostra aos lobos cidadãos. E então podem me responder algumas perguntas?
MEGAFONE – A resposta foi sim. Depois de um mês aquele Porquinho já havia feito o cadastro, já sabia o número de lobos em cada casa, já sabia o número de filhotes, religião, condições de saúde, até o time que cada lobo torcia ele já sabia.

Ao final da narração todos os lobos estão usando focinheiras.
Ouve-se uma sirene policial. Entram em cena outros dois porcos ou dois lobos sem focinheira. São  policiais. Eles apenas passam em revista. Os lobos, todos com focinheiras, olham e ficam quietos.
Em seguida entra outro porco com um porquinho maior na mão. Sugere-se que use uma roupa mais formal.
PORCO OFICIAL – Olá, bom dia. Olhando para um dos lobos. Onde está o Lobão?
LOBO – Foi embora do País porque a Dilma ganhou.
PORCO OFICIALa um dos lobos-  O Sr. deve ser o Lobo 1?
LOBO 1 – Balançando com a cabeça que sim. Sim!
PORCO OFICIAL – Pois bem, Sr. Lobo. Eu venho aqui a mando do Estado para cumprir o pedido de reintegração de posse desta área pedida pela empresa “Três porquinhos empreendimentos” cujo dono é o famoso porquinho Três, animal visionário que construiu uma casa de tijolos e pedras. Conhecem essa história? ao público Mas isso é outra história, não?
LOBO 1 – Isso aqui é nossa alcatéia e nós não vamos sair.
PORCO OFICIAL – Pra que dificultar as coisas? Vocês são 1000 famílias, sendo 5 mil lobos, destes, um terço são mulheres, 30% de idosos,  1500 crianças, 3.215 corinthianos, mil são paulinos, 600 palmeirenses, 184 santistas e um torcedor da portuguesa. Recebem  atualmente do Estado: vale leite, acesso a creche, hospitais, etc. Vocês são cidadãos referindo-se às focinheiras mas se recusarem a sair terei que enquadrá-los como criminosos e voltarão a ser lobos maus.
CORO DE LOBO – Podem amedrontar, podem a propriedade defender. Nem um porco, nem dez, nem cem, conseguirá daqui nos remover!

QUADRO DE TV
Sugere-se usar uma carcaça de TV.
ÂNCORA – Obra social das Três Porquinhos Empreendimentos é impedida pela ação criminosa de lobos maus.
PORCO DONO DA EMPREITEIRA – Desde pequeno, eu tenho um sonho: dar condições aos de menos condições. Eu peço aos lobos maus que deixem minha terra. Terra que foi invadida, criminosamente invadida. Nós, da Três Porquinhos Empreendimentos, construiremos o maior complexo imobiliário do planeta naquela área. Isso fará de nossa cidade, de nosso País, uma referência para o mundo. Infelizmente o valor de cada imóvel é mais do que o valor de toda essa alcatéia de invasores que certamente ficaram flauteando enquanto eu trabalhava. Eu não tenho culpa de ter muito.
ÂNCORA – Mas... enquanto a obra social?
PORCO DONO DA EMPREITEIRA – Ah, sim. Comprometo-me publicamente a disponibilizar os tratores para demolição do terreno. Assim, os lobos maus desta alcatéia, não precisarão, como consta na lei, deixar a área como a encontraram.

 CORO DE LOBO – Podem amedrontar, podem a propriedade defender. Nem um porco, nem dez, nem cem, conseguirá daqui nos remover!
Lobos comemoram
PORCO OFICIAL – Trago aqui em minhas mãos um documento importante. Trago a ordem de despejo e digo mais: uma proposta de bolsa aluguel para as famílias com filhotes de até 5 anos que conforme cadastro são 132.
LOBO – E o resto?
PORCO OFICIAL – O resto vai trabalhar, né? Ponham os filhotes no farol.  Não é assim que vocês fazem?
CORO DE LOBO – Podem amedrontar, podem a propriedade defender. Nem um porco, nem dez, nem cem, conseguirá daqui nos remover
MEGAFONE -  Na noite seguinte, descumprindo a lei, a polícia arrombou portas, jogou gás de pimenta, espancou vários lobos. Mas os lobos unidos daquela alcatéia conseguiram resistir. Centenas de lobos ficaram feridos, 30 deles morreram no enfrentamento. Na Tv foi noticiado que os Lobos agrediram os policiais que reagiram. “Houve troca de tiros e um policial foi gravemente ferido...”. Sem nenhum tiro ter sido disparado pelos lobos os policiais foram expulsos da alcateia.
Mostra-se os lobos empunhando pedaços de madeiras, faixas, etc. Com dados que foram coletados durante a pesquisa. Ex. dados ligados a empreiteiras e a política, criminalização dos movimentos, repressão policial, etc. Os lobos, em coro, retiram as focinheiras.
CORO DE LOBO – Podem amedrontar, podem a propriedade defender. Nem um porco, nem dez, nem cem, conseguirá daqui nos remover!
PORCO  ADVOGADO – Eu venho em paz! (segura um grande cofrinho em formato de porco). 
Venho a mando de meu cliente dizer que faremos uma trégua. E que vocês poderão permanecer no local. A Alcatéia poderá ficar. Acariciando o cofrinho O bom senso venceu! Espero continuando a acariciar o cofrinho que tudo tenha se esclarecido. E me ponho à disposição caso alguém de vocês precise.
CORO DE LOBO –  o coro se afasta deixando apenas um lobo que fica cara a cara com o Porco Advogado Podem amedrontar, podem a propriedade defender. Nem um porco, nem dez, nem cem, conseguirá daqui nos remover!
O coro desaparece. Ficam em cena apenas o Porco advogado e um dos Lobos. O Porco Advogado quebra o cofrinho cheio de moedas aos pés do Lobo que se ajoelha perante o Porco. Com um isqueiro o Lobo queima a faixa escrito Alcatéia.
CORO DE LOBO – Podem amedrontar, podem a propriedade defender. Nem um porco, nem dez, nem cem, conseguirá daqui nos remover! Mais um apenas um de nós pode por tudo a perder.
Ouve-se “Money” Pink Floyd que é tocada pelo Megafone. A atriz ou ator que está com o Megafone conduz o público ao som da música para uma sala.

3 CRIANÇAS BRINCANDO OU É DESDE PEQUENO QUE SE APRENDE
Na sala existem cadeiras enfileiradas para dois lados diferentes. As cenas acontecem comitantemente.  Trata-se de duas crianças brincando de sociedade.
Em uma  das cenas vê-se um filho que recebe um brinquedo da mãe. Ele está sentado olhando seus brinquedos com certo desprezo. No chão vê-se algumas casinhas, dando ideia de um bairro e muitas árvores. O menino ganha uma caixa enorme onde se vê escrito “Fábrica de Carros”. A cena se desenvolve a partir das seguintes ações:

  1. Menino tenta achar espaço para por a fábrica;
  2. A fábrica só abre ao colocar moedas dentro. A cada moeda uma nova surpresa;
  3. Menino abre a fábrica e retira de lá um carro esportivo de brinquedo. Ele brinca com o carro, mas vê o primeiro obstáculo: um bairro;
  4. Nova moeda. Menino retira um trator e brinca, com muita felicidade, de remover casinhas, etc;
  5. O carro volta a passear com as ruas livres e encontra o segundo obstáculo: um outro bairro mais arborizado;
  6. Nova moeda, uma caixa de fósforos. O menino queima a floresta;
  7. Nova moeda, um prédio é colocado no lugar das árvores;
  8. O menino estaciona o carro no prédio;
  9. Sai de cena pedindo novas moedas para a mãe.

Na outra cena vê-se uma menina que se vê obrigada pela mãe a arrumar seu quarto. A menina encontra a bolsa da mãe, esquecida ali por acaso. A menina pensa em devolver a bolsa à mãe, mas desiste.
A partir daí a menina faz uso de vários objetos compondo, aos olhos do público, gestos que desnaturalizam  os objetos encontrados.
  1. Menina acha uma tele-sena. Venda os olhos com ela e faz dos olhos uma arma de raio laser;
  2. Pega contas de papel e brinca de bombas;
  3. Tira uma cruz de madeira e faz dela um revólver;
  4. Pega uma boneca e a sequestra. Pega o celular da mãe para ligar e pedir o resgate. “Eu quero um Play Station 4”;
  5. Mata a boneca sem querer com a cruz em forma de revólver;
  6. Sai de cena chamando pela mãe.

As duas cenas são de mesma duração.

Fim do ensaio 2014.

Fábio Resende

Artista orientador de teatro – CEU Três Lagos

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Reflexão sobre a Coordenação Regional: articulações de experiências

A coordenação regional chega ao Programa Vocacional em 2014 como antecipação às políticas culturais territoriais a serem implementadas pela SMC em 2015.
Recortado em macrorregiões (norte, sul, leste, centro-oeste), o objetivo dessa coordenação foi acompanhar e desenvolver processos de ação cultural do Programa na cidade. Outra demanda que recaiu sobre essa coordenação foi a da interface entre o Vocacional e os equipamentos públicos que o recebem, ou não. Desses últimos, criar a perspectiva da territorialização.
Na experiência dessa coordenação, que internamente se bateu entre aceitação e rejeição à sua criação, pela própria equipe, buscou-se entender: Quais são as demandas reais dessa coordenação? Quais são as competências? Como “dar conta” dos territórios em sua abrangência sociocultural? Como as coordenações, em sua estrutura de contratação, conseguem implementar ações ? É de sua competência?
Nessa reflexão sobre a coordenação regional, procurei olhar com a lente que desenvolvi na minha trajetória do Vocacional, desde 2009. Por ela, vi realidades artísticas serem construídas pela ação do programa, nesses anos.


Experiência na região Sul

A região Sul, em que atuei como coordenação (equipe, ação e regional) é lugar fértil para ações culturais. O foco como coordenação sempre foi “mover fronteiras” e territorializar-desterritorializar. O que isso significa?
Na prática, significa criar deslocamentos dos vocacionados entre equipamentos, compartilhar e misturar pensamentos artísticos, procedimentos e processos. Durante os anos de minha coordenação de equipe e ação, quando pude estar mais próxima aos vocacionados e seus processos, assim como com as equipes de artistas-orientadores e coordenações, essa mobilidade era potencialmente estimulada (e ainda é assim). Os vocacionados transitavam de um lugar a outro, sem se fixar... sendo orientados por todos! Desenhavam suas rotas de criação – relação ente os processos, trocas, formação de grupos, criação de identidade artística. Isso foi possível, em diversas
microrregiões da zona sul, pois se estabeleceu como modo de estar num Programa Público de Arte.


Projetando sobre a cidade

Esse mesmo modo, ambiciosamente falando, como uma megalomaníaca... se projetaria por toda a cidade, numa desfronteiralização das regiões norte, sul, leste e centro-oeste. O olhar do coordenador regional iria do particular ao molecular, onde nenhuma estrutura é móvel. Isso implica em “puxar os fios” e amarrá-los com novos sentidos. Zina Filler sempre me trouxe a imagem dos nós da rede que, a meu ver, são pontos de passagem, mais do que fixações. Seriam “desejos” traduzidos em “necessidades nascidas nos processos de criação” e não na pseudosubjetividade de vocacionados (eterna zona de conforto no Programa). Daí sim, mapearíamos processos de criação e as pesquisas das equipes, saindo de uma divisão regional, social e cultural, para um “mapa afetivo”, uma “cartografia das forças de criação”! Entendo essa ação numa soma de coordenações regionais e de formação, de projetos e equipes (artístico pedagógicas).
Essa cartografia – desenho que origina os mapas – compreende as relações ou conexões. São as redes criativas com interface de comunicação. Dessas ferramentas, muitos já fazem uso. Na sul temos os blogs:

http://vocacionaldancasul2b.blogspot.com.br/
http://pavio.hotglue.me/
http://dancasul1.blogspot.com.br/

Espaços de compartilhar processos, pesquisas das equipes, ações. As ferramentas de comunicação deveriam se efetivar com muito mais força do que já acontecem. Além da estrutura interna do programa e da Secretaria de Cultura, na sua Divisão de Formação, poderíamos compor agendas e agenciamentos com as demais secretarias que passam a estar envolvidas com as ações do Vocacional na perspectiva territorial, de modo que as forças de criação se movam em seus mais diversos sentidos.
Eis o grande potencial do Vocacional na cidade e da participação da coordenação regional para a sua potência.

                                                                                                                                       
                                                                                                                                          Tutti Madazzio
Coordenação Regional Sul

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Ensaio Sem Título (Nov.2014) - Andrea Tedesco - Coordenadora Teatro - Norte 1

Relato Sem Título (Nov.2014)
 Andrea Tedesco

Preciso começar contando uma história que não é minha: quando eu era aluna, em 2009, da turma de Clown da Bete Dorgam, ela contou uma história sobre um processo que vivenciou com a Quito. Nesse processo, para a construção de um determinado espetáculo, o elenco deveria aprender a fazer origamis. Para isso, o elenco matriculou-se em um curso com uma professora japonesa. A Bete conta que foi para o curso com uma expectativa de que a aula tivesse instruções como: recorte assim, agora junte a ponta “A” com a ponta “B”, agora dobre o lado “H” e assim por diante. Mas ao chegar, constatou que a professora fazia os origamis, um após o outro, sem nada falar. Ao ser questionada sobre como iriam aprender sem nenhuma instrução, a professora respondeu “escutem o papel “, e calou-se novamente.
...
O ano de 2014 foi o primeiro em que estive atuando na Zona Norte e na coordenação de uma equipe do Programa Vocacional. A situação, muito nova e desafiadora, só permitia que me colocasse em estado de escuta para apaziguar qualquer ansiedade, qualquer necessidade precipitada de ação. Passei a estabelecer, frequentemente, paralelos com o trabalho do ator (que é meu ofício), seja no momento em que este desenvolve sua pesquisa artística (processo), seja durante a apresentação de um espetáculo. Nessas conexões recorria à memória do risco, do impreciso, do imprevisto, do estar em jogo pronta para o acolhimento do outro. Recorrer à experiências de atriz me sustentou nessa busca por esse estado de uma atenção diferente, que eu poderia chamar de atenção cartográfica, segundo Virgínia Kastrup. Segundo ela, “trata-se aqui de ressaltar que a atenção cartográfica – ao mesmo tempo flutuante, concentrada e aberta (...) é também um caso de criação do que já estava lá”. Ou ainda poderia recorrer à ideia de estado de espreita, conforme paralelo feito por Tatiana Motta Lima entre o ato da caça e o ofício do ator: “Caçar pressupõe uma relação com a natureza onde a alteridade desta não é, e não pode ser, submetida a um controle do caçador. Na caçada clássica o caçador se disponibiliza para, no contato com a floresta, encontrar as pistas que o levarão à caça. Como não pode controlar estas pistas, seu percurso é feito de adaptações e ajustes e não é um percurso que possa ser projetado a priori. Falo de alteridade porque vejo que é na tentativa de assumir o controle, de realizar um projeto previamente estruturado, que se produz a ‘coisificação’ do outro, seja ele caça, ou outro homem”.
 A pesquisa desenvolvida na Equipe Norte 1 ao longo de 2014 foi embasada na ação e na prática cotidiana do encontro com o outro, sem pretensão de solucionar  problemas como propõe o conceito de pesquisa-ação. A pesquisa artística processual da equipe vai ao encontro do princípio do nomadismo proposto pelo Material Norteador do Programa e, por isso, vai  também na contramão de qualquer ideia de pesquisa acadêmica. A pesquisa artística é de outra natureza, muitas vezes é impossível traduzi-la em palavras e sua maior potência pode estar na experimentação do fato estético. Não há levantamento de hipóteses e o processo não é reto em direção a algo que se precise provar.  Até mesmo a ideia do “recorte” realizado para o desenvolvimento de uma pesquisa acadêmica transforma-se em algo multifacetado quando dentro do Vocacional: essas facetas variam de região para região, de equipamento para equipamento, de turma para turma, de linguagem para linguagem, e estão sempre em relação e mudança. Essa agilidade e esse movimento nômade exigem que estejamos todos dentro do jogo, sem diferenciação entre sujeito e objeto a ser estudado. Todos somos sujeitos.
A partir disso, penso qual seria o melhor formato para este ensaio, que conseguisse dialogar com esse estado de atenção e que fosse a tradução desses processos artísticos pedagógicos. Qual seria a forma guardada nesse conteúdo?  Penso na literatura, na poesia e em suas lacunas. Sim, gostaria de imprimir mais silêncios do que certezas, gostaria de sugerir apenas, e solicitar a escuta atenta de tudo que ficará por escrever.
...

“Como a filosofia e as ciências humanas, a literatura é pensamento e conhecimento do mundo psíquico e social em que vivemos. A realidade que a literatura aspira compreender é, simplesmente (mas, ao mesmo tempo, nada é assim tão complexo), a experiência humana. Nesse sentido, pode-se dizer que Dante ou Cervantes nos ensinam tanto sobre a condição humana quanto os maiores sociólogos e psicólogos e que não há incompatibilidade entre o primeiro saber e o segundo. O Idiota, de Dostoievski, pode ser lido e compreendido por inúmeros leitores, provenientes de épocas e culturas muito diferentes; um comentário filosófico sobre o mesmo romance ou mesma temática seria acessível apenas à minoria habituada a frequentar esse tipo de texto. Entretanto, para aqueles que o compreendem, os propósitos dos filósofos têm a vantagem de apresentar proposições inequívocas, ao passo que as metáforas do poeta e as peripécias vividas pelas personagens do romance ensejam múltiplas interpretações.” (Tzvetan Todorov em A literatura em Perigo)
Uso a literatura e a poesia como exemplos para falar de arte, para falar de arte dentro do Programa Vocacional. A chegada do Material Norteador em 2011 foi um marco importante para este programa de características tão singulares, sendo importante até hoje como baliza de uma prática artístico-pedagógica que vai na contramão do modelo social e espetacular vigente. Por outro lado, parece que (apesar da liberdade proposta por esse material) ele também é marco de um período mais conceitual, ou acadêmico, do programa, o que pode significar, em alguns casos, um distanciamento ou uma dificuldade para mergulhar nos processo artísticos.
Muito paradoxal, a situação pode ser constatada na prática com o recorrente questionamento do material por parte dos artistas orientadores. Tais questões, que não se apresentavam anteriormente, variam do âmbito do ”essa prática é permitida ou não?” ao campo da exegese de palavras, termos e conceitos. Não há a priori incompatibilidade entre um universo e outro (da arte e da academia, da teoria e da prática); pelo contrário, um pode potencializar o outro, alimentar a outro. O que não pode acontecer é um atravessar o outro, ou se impor em momentos processuais inadequados. E aqui vamos descobrir que o problema não é o Material Norteador, mas a dificuldade estrutural do programa em dar conta da complexidade de suas proposições e potencialidades.


Muitas vezes nos sentimos esquizofrenicamente divididos e operando numa dualidade simplista, transferindo para o processo artístico a angústia por essa falta de encaixe do Programa dentro da Secretaria Municipal de Cultura (SMC). Exatamente por não ser possível separar uma instância da outra, a artístico/pedagógica da institucional/estrutural.
Me pergunto se seria possível tentar não confundir as coisas, saber localizar, rastrear minimamente os problemas para preservar o trabalho na ponta. Mas, por outro lado, preservar o trabalho na ponta seria o bastante? Ou isso pode significar uma acomodação na precariedade?
Comecei o texto falando sobre a necessidade da escuta e da abertura para a alteridade. Penso ser impossível não traçar o paralelo com a relação que a SMC estabelece com os seus artistas contratados e programas por ela criados e abrigados. Com falta de verba e de pessoal, e engessada por entraves burocráticos, a SMC tenta, com pouco ou nenhum sucesso, avançar no diálogo com artistas e programas artísticos, cujas singularidades acabam sendo desconsideradas.
Muitos grupos de trabalho foram criados, ao longo deste ano, dentro do Programa. Os estudos realizados por esses grupos propõem novos olhares e alternativas de ação que dialogam com a proposta de integração da Secretaria, por meio do tripé programação cultural, cidadania cultural e formação cultural. Dentre esses grupos, gostaria de destacar o Vocacional Memória, que busca historicizar a trajetória do programa ao longo dos seus anos de existência. O grupo destaca a importância do momento no qual o Vocacional foi criado, não como um programa isolado, mas fazendo parte de uma política maior, juntamente com os Programas Formação de Público e Ocupação dos Teatros Distritais. E também, nessa mesma direção, há que se destacar as ações do grupo de artistas orientadores que se debruçou sobre a relação entre os teatros distritais, o vocacional e a comunidade local.
Posto tudo isso, gostaria de terminar este depoimento – e este ciclo – esperando ser cada vez mais artista nas questões políticas e cada vez mais politizada nas questões artísticas, tentando lutar sem perder a essência de um olhar que não pode ser adormecido. Escolho, então, encerrar o ano renovando a esperança naquilo que chamo de guerrilha homeopática e, oportunamente, citando o Caráter Destrutivo de Benjamin:
“O caráter  destrutivo não vê nada de duradouro. Mas eis precisamente porque vê caminhos por toda parte. Onde outros esbarram em muros ou montanhas, também aí ele vê um caminho. Já que o vê por toda a parte, tem de desobstruí-lo também por toda a parte. Nem sempre com brutalidade, às vezes com refinamento. Já que vê caminhos por toda parte, está sempre na encruzilhada. Nenhum momento é capaz de saber o que o próximo traz. O que existe ele converte em ruínas, mas por causa do caminho que passa através delas. O caráter destrutivo não vive do sentimento de que a vida vale ser vivida, mas de que o suicídio não vale a pena.”


Referências bibliográficas:
Benjamin, Walter. O Caráter Distrutivo. Frankfurter Zeitung (20 de novembro de 1931).
Kastrup, Virgínia. O Funcionamento da Atenção no Trabalho do Cartógrafo. Psicologia e Sociedade no. 19 (15-22). UFRJ. Rio de Janeiro. 2007.
Motta Lima, Tatiana. Em busca (e à espreita) de uma pedagogia para o ator. XV CONFAEB – Congresso Nacional da Federação de Arte Educadores do Brasil.
Todorov, Tzvetan. A Literatura em Perigo. Rio de Janeiro. DIFEL, 2014.





segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Ricardo Corrêa
Artista orientador do Céu São Rafael - Leste 2


Setembro.
Chegada em um CEU da zona leste
São Rafael
Teatro
Adolescentes
Uma porção de novidades
Tateando primeiros contatos
Das turmas em processos diferentes
Problemas diferentes
Realidades sociais diferentes da minha
Vidas
Pulsando uma centelha viva do teatro
Dar asas
Dar máscara de clown
Ao existencialismo da turma de sábado
Das dificuldades
Da mudança de A.O
De colocar em prática um treinamento
Eu, palhaço inadequado com palhaços jovens procurando pertencimento ao mundo.
Jogo
Vivos querendo sugar algo deste aqui
Triangulação
Conceitos
Orientando pra algo desconhecido
Uma calça pra uma jovem de dezesseis anos
Dama morte dramaturgia aquecimento.
Passou rápido
Crescimento
Deparei-me com sonhos
De cada
Da introspeção de vários.
Limitações
Burocracias de espaços
Olhares inquisidores do que estava fazendo ali
Ações culturais
Falta de recursos
Assistimos
Debatemos
Trocamos
Demanda
Somos como peixes de um aquário distorcendo realidades através do teatro?

Não sei.

Sobre apostar na iminência

Marina Corazza 
Artista-coordenadora da equipe de TEATRO - Leste 2


Sobre apostar na iminência

“A música, os estados de felicidade, as caras trabalhadas pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares, querem nos dizer alguma coisa, ou disseram algo que não deveríamos ter perdido, ou estão por dizer alguma coisa; esta iminência de uma revelação que não se produz talvez seja o fato estético[1].”


          Este ensaio é uma proposta de problematizar as necessidades de se escrever, obrigatoriamente, um ensaio nas atuais configurações do Programa Vocacional, mais especificamente do Projeto Vocacional Teatro. Por mais que, todos os anos, pontes, frágeis e efêmeras, tenham sido construídas, a distância estrutural em relação às demais linguagens me limita, infelizmente, a ter a experiência do programa do ponto de vista da linguagem teatral.

            Pergunto-me aqui sobre o objetivo da escrita do ensaio no contexto do vocacional na tentativa de iluminar os desafios que temos na comunicação do programa entre a Divisão de Formação (SMC) e seus processos artístico-pedagógicos.

            Antes de tudo, acho importante reforçar que muitas condições mínimas de trabalho têm sido demandadas pelos artistas que participam anualmente do programa. Estas demandas vão no sentido de potencializar as próprias premissas essenciais deste programa público, a saber (mais uma vez): a fundamental presença de um coordenador geral (chegamos a propor uma gestão compartilhada por três profissionais contratados para este fim); a continuidade do programa, estendendo seu período de contratação de oito para dez meses, no mínimo; e infraestrutura adequada que envolve desde materiais a transporte suficiente para as ações do programa. Além disso, os artistas dos quais é cobrada uma atitude de pesquisadores, e não de oficineiros, nada recebem por suas horas engajadas na pesquisa de materiais que dialoguem com os processos e no planejamento das orientações. As quatro horas mensais destinadas à escrita do ensaio, são direcionadas, na prática e de forma insuficiente, para o planejamento.

            Esta é uma das camadas da configuração atual do programa, entrelaçada a ela, somam-se as demais considerações que faço aqui.

            Vou partir do princípio que a arte é uma língua e a escrita (com forte influência acadêmica, como no caso do ensaio), outra. Em primeiro lugar me pergunto o porquê da escrita acadêmica ser a forma que deve ser concretizada como “palavra final” dos processos. A intenção de quando se pensou o ensaio poderia não ser bem essa de “palavra final”, mas a verdade é que no interior das equipes, de modo geral, a obrigatoriedade do ensaio é opressora. Na maioria das vezes os processos nas turmas, grupos e equipes não necessariamente passam pelo diálogo com um ensaio escrito; muitas vezes outros são os desdobramentos mais pulsantes.

            E mais uma vez nos perguntamos: Para que? Para quem? Para o estado desdobrar suas políticas públicas? Para a academia ter onde buscar dados? Para nós, artistas da cidade? Quem realmente lerá o que estou escrevendo? A escrita ensaística pode ser para alguns pensadores acadêmicos a possibilidade de respirar mais livremente e deixar o pensamento fluir para além de algumas das amarras tão apertadas. Mas essa não é uma necessidade de um Programa como o Vocacional, ou pelo menos não deveria ser, já estamos fora da universidade (ou não?). Porque não apostamos em registros dessas memórias que sejam, eles também, forma e conteúdo de seus processos? Que possam ser coletivos? Que explodam os limites da forma escrita?

            Quando refletimos sobre a ação dos artistas-orientadores, nos parece bastante equivocada e embrutecedora a atitude de “passar por cima” de um sentimento generalizado nas turmas/grupos de que algo está errado, de que algo está oprimindo outras formas prestes a nascer. Pergunto-me o quanto que a atitude cobrada do artista-orientador como mestre ignorante, numa atitude pesquisadora e atenta, é também efetivada pelas outras esferas do programa, inclusive por uma coordenação geral (que não existe!). Esse sentimento de obrigatoriedade, de cumprir uma tarefa, que é o contrário de toda autonomia e de explosão de formas, que entendo que o programa preconiza, me remete diretamente ao modo de operar do mestre embrutecedor em detrimento a atitude de um mestre ignorante como descreve Rancière:

“O mito pedagógico, dizíamos, divide o mundo em dois. Mas, deve-se dizer, mais precisamente, que ele divide a inteligência em duas. Há, segundo ele, uma inteligência inferior e uma inteligência superior. A primeira registra as percepções ao acaso, retém, interpreta e repete empiricamente, no estreito círculo dos hábitos e das necessidades. É a inteligência da criancinha e do homem do povo. A segunda conhece as coisas por suas razões, procede por método, do simples ao complexo, da parte ao todo. É ela que permite ao mestre transmitir seus conhecimentos, adaptando-os às capacidades intelectuais do aluno, e verificar se o aluno entendeu o que acabou de aprender. Tal é o princípio da explicação. Tal será, a partir daí, para Jacotot, o princípio do embrutecimento.
Entendâmo-lo bem – e, para isso, afastemos as imagens feitas. O embrutecedor não é o velho mestre obtuso que entope a cabeça de seus alunos de conhecimentos indigestos, nem o ser maléfico que pratica a dupla verdade, para assegurar seu poder e a ordem social. Ao contrário, é exatamente por ser culto, esclarecido e de boa-fé que ele é mais eficaz. Mais ele é culto, mais se mostra evidente a ele a distância que vai de seu saber à ignorância dos ignorantes. Mais ele é esclarecido, e lhe parece óbvia a diferença que há entre tatear às escuras e buscar com método, mais ele se aplicará em substituir pelo espírito a letra, pela clareza das explicações a autoridade do livro. Antes de qualquer coisa, dir-se-á, é preciso que o aluno compreenda e, para isso, que a ele se forneçam explicações melhores. Tal é a preocupação do pedagogo esclarecido: a criança está compreendendo? Ela não compreende? Encontrarei maneiras novas de explicar-lhe, mais rigorosas em seu princípio, mais atrativas em sua forma; e verificarei que ele compreendeu.”  (Rancière, 2011, p.24)

            Essa comparação pode parecer forçada, mas no interior da maioria das equipes, o sentimento em relação ao ensaio é parecido com o do discípulo de um mestre embrutecedor: isso não faz parte do processo, mas preciso produzir “um bom ensaio” que mostre como sou crítico no meu fazer artístico-pedagógico, preciso mostrar que sei problematizar as questões que envolvem o processo, o equipamento, o programa, preciso também escrever poeticamente para mostrar que sou inteligente e sensível e sei articular referências da arte, da filosofia e talvez das ciências sociais...
         
   Essa angústia de cumprir uma tarefa descolada da realidade e de suas reais necessidades me parece um reflexo da distância institucional que o programa tem entre as pontas dentro da secretaria e as pontas do trabalho com os vocacionados.

            Além disso, não podemos ignorar que as condições de trabalho não são apropriadas para gerar um ensaio: artistas-orientadores e artistas-coordenadores não recebem por horas de planejamento e pesquisa dos processos, e muito menos, para darem voz à memória processual do programa, seja por meio de ensaios ou outros registros críticos; os processos artísticos acabam não tendo a continuidade desejada porque se veem dentro da ciranda na qual artistas-orientadores devem encontrar a demanda nos equipamentos ao longo de três meses, por outros três meses buscar com a turma quais são as questões pungentes nas relações entre forma e conteúdo que os perpassam como agrupamento, ter mais dois meses para encontrar materialidades que concretizem essas questões e quando aquele coletivo começa a entender suas relações com o teatro, o equipamento, e o entorno é completamente abandonado pelo final da edição.

            Se estes problemas estruturais fossem resolvidos, mantendo-se a essência do programa, talvez a questão da memória pudesse culminar em pequenas obras de formatos variáveis, inclusive ensaios, que funcionassem tal como preconizado no material norteador:

“Registrar a memória de um processo significa entrar em contato com a natureza do tempo, ao constituir-se numa construção e reconstrução constantes de sentidos para a experiência coletivamente empreendida. (...) Construir a memória de um processo, por meio de registros constantes em suportes e maneiras diversas, implica assim em encontrar possibilidades narrativas que tornem o processo criativo coletivamente consciente, por meio do confronto e apreciação ativa de materializações possíveis que refletem instantes da experiência ao longo do processo”.

        É importante ainda pontuar que em função destas distorções estruturais e de demandas descoladas da realidade dos processos como o ensaio, muitas equipes em pleno mês de dezembro, pelo qual não somos contratados, ainda estão fazendo reuniões, muitos ensaios ainda não foram entregues e, com frequência, as horas de trabalho são ultrapassadas para se dar conta das demandas “descoladas”, sem prejudicar os processos artísticos e seus desdobramentos.

            No atual contexto do vocacional, me pergunto se para a Divisão de Formação (SMC), o ensaio não acaba substituindo a concretude da cena, uma “prestação de contas” distante da realidade, um documento enviado e catalogado junto com tantas outras planilhas no blog. Pergunto-me se essa “concretude”, “visualização” não substitui a concretude de tantas materialidades artísticas criadas em seus processos, essas sim, resultados de um constante formular e reformular de inquietações de artistas-vocacionados e artistas-orientadores.

            Uma vez numa reunião de equipe, uns anos atrás, comentei que o ensaio era o próprio processo artístico, que se pensa, que se lança a deslocar referências, a encontrar a pergunta síntese que pulsa dentro de um determinado agrupamento, que relaciona as referências novas e as já conhecidas. Mas a questão não reverberou e continuo achando que o ensaio está no contexto do vocacional para catalogar, aferir, ou avaliar (quando lido) se o artista-orientador “fez um bom trabalho ou não”, se “tem consciência ou não” do processo artístico que está orientando. Mesmo que esta não seja a intenção primeira, a configuração do programa corre o risco de delegar à escrita do ensaio a valoração do trabalho de determinado artista. A materialidade da escrita corre o risco de se sobrepor às materialidades dos processos artísticos e me pergunto do por que o medo de apostar na segunda concretude, a dos processos, em consonância com o próprio material norteador do programa. Será que não seria possível encontrar meios de catalisar, por parte da Divisão de Formação, as materialidades/reflexões/proposições estéticas geradas nos processos para muito além do ensaio, e que estivessem a favor do trabalho com os vocacionados e da criação de diálogos entre os processos na cidade?

            A relação entre as materialidades artísticas geradas ao longo dos processos e a necessidade da escritura de um ensaio por cada um dos artistas-orientadores talvez exponha a dificuldade que, no próprio corpo de artistas, encontramos de bancar a arte em sua concretude que é antes, durante e após, fruto de experiência. O processo artístico para se justificar precisa de um ensaio, um relatório, planilhas que “justifiquem a arte”, que possam “aferir a arte”.  

            Essa necessidade de traduzir a arte para uma língua “superior”, “culta”, que seja legitimada por um contexto outro que não o da própria arte, em especial num programa no qual brigamos tanto para que os processos tenham visibilidade para nós e para a cidade, me lembro das propostas de Boaventura para o que chama de “Sociologia das Ausências”:

“O olhar que vê uma pessoa cultivar a terra com uma enxada não consegue ver nela senão o camponês pré-moderno. A isso se refere Koselleck quando fala da não contemporaneidade do contemporâneo (1985), sem, no entanto, problematizar que nessa assimetria se esconde uma hierarquia, a superioridade de quem estabelece o tempo que determina a contemporaneidade. A contração do presente, esconde, assim, a maior parte da riqueza inesgotável das experiências sociais no mundo. Benjamin identificou o problema mas não as suas causas. A pobreza da experiência não é expressão de uma carência, mas antes a expressão de uma arrogância, a arrogância de não se querer ver e muito menos valorizar a experiência que nos cerca, apenas porque está fora da razão com que podemos identificar e valorizar.
A crítica da razão metonímica é, pois, uma condição necessária para recuperar a experiência desperdiçada. O que está em causa é a ampliação do mundo através da ampliação do presente. Só através de um novo espaço-tempo será possível identificar e valorizar a riqueza inesgotável do mundo e do presente. Simplesmente, esse novo espaço-tempo pressupõe uma outra razão. (...)
Na fase de transição em que nos encontramos, em que a razão metonímica, apesar de muito desacreditada, é ainda dominante, a ampliação do mundo e a dilatação do presente têm de começar por um procedimento que designo por sociologia das ausências. Trata-se de uma investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade, ativamente produzido como tal, isto é, como uma alternativa não-credível ao que existe. O seu objeto empírico é considerado impossível à luz das ciências sociais convencionais, pelo que a sua simples formulação representa já uma ruptura com elas. O objetivo da sociologia das ausências é transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças. Fá-lo centrando-se nos fragmentos da experiência social não socializados pela totalidade metonímica. O que é que existe no Sul que escapa à dicotomia Norte/Sul? O que é que existe na medicina tradicional que escapa à dicotomia medicina moderna/medicina tradicional? O que é que existe na mulher que é independente da sua relação com o homem? É possível ver o que é subalterno sem olhar à relação de subalternidade?
Não há uma maneira única ou unívoca de não existir, porque são vários as lógicas e os processos através dos quais a razão metonímica produz a não-existência do que não cabe na sua totalidade e no seu tempo linear. Há produção de não-existência sempre que uma dada entidade é desqualificada e tornada invisível, ininteligível ou descartável de um modo irreversível.”
                                                                                                                (Boaventura, 2002, p. 245)

      Inspirada pelas propostas de Boaventura, no contexto atual do Programa Vocacional, pergunto-me como dar voz aos processos artísticos e suas materialidades? Como dar voz a tantas reflexões/criações, que considero elas mesmas “ensaios” de muitos corpos-cabeças no espaço-tempo?

    Para finalizar, olho para o “problema” do ensaio sobre um outro recorte que perpassa todo o programa: a difícil tarefa que nós, artistas-orientadores e artistas-coordenadores, temos de enfrentar ao sermos sociedade civil e estado ao mesmo tempo no vocacional.   
        
     É complicado enxergar com lucidez, em que medidas a responsabilidade pela distancia das esferas de coordenação é dos artistas do programa, o quanto é do estado. Muitas vezes estamos a serviço de demandas que são muito mais institucionais, que partem da necessidade do estado de catalogar, organizar e não das reais necessidades do programa e não conseguimos nos libertar dessa ciranda.
         
     O quanto nós mesmos não acabamos repetindo o estado, o quanto ele entra em nós e nos confunde e paralisa – a obrigatoriedade da escrita de um ensaio me parece resultante disso. Onde estão as brechas? O quanto nós mesmos não as tampamos, nos antecipando ao próprio estado? Nos tornando estado?
        
   Como criar uma estrutura que esteja na ponta e na rede com a secretaria para que não sejamos mestres embrutecidos de nós mesmos?
     Penso que não podemos nos ausentar de reinventar constantemente formas novas de ocupar o estado por suas margens, verticalizando a própria história e princípios do programa.
      
      Que brechas ainda não foram exploradas por nós como artistas infiltrados no estado?

      Que ações, num determinado tempo espaço, bancam a radicalidade e a iminência estéticas, como forma inclusive de tornar possíveis formas mais potentes de “ensaios”?

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Marina Corazza: Em 2014 experimentou a interessante vivência de ser artista-orientadora do CEU São Rafael (Teatro – Leste 2), e assumir, em setembro, a função de artista-coordenadora da Equipe Leste 2.




Referências bibliográficas

BORGES, Jorge Luís. La Muralla y lós Libros. In: Obras Completas. Buenos Aires, Emecé, 1994.
COELHO, Teixeira. A cultura e seu contrário – Cultura, arte e política pós-2001. São Paulo: Iluminuras:Itaú Cultural, 2008.
DAS, Veena y POOLE, Deborah. El estado e sus márgenes.Etnografias comparadas. Santa Fe: SAR Press, 2004.  
GARCÍA CANCLINI, Néstor. A sociedade sem relato – Antropologia e Estética da iminência. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.




[1] Borges, “La Muralla y los Libros”, 1994, p.13

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