quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Réquiem para Artes Integradas

Réquiem para Artes Integradas ou
Detalhes tão pequenos do Vocacional

por Danilo Monteiro

Ao reconhecer que existe um campo de criação artística que não se restringe às linguagens específicas, o Programa Vocacional reafirmou seu pioneirismo artístico-pedagógico. Ao “descontinuar” as Artes Integradas no Programa, opera-se um retrocesso quase incompreensível.


Através desta modalidade do Vocacional, todo um campo de criação artística contemporânea foi trazido para o programa e espalhado para (poucos mas) diversos pontos da cidade, em especial nas periferias: um campo que abrange a performance, a instalação, a ocupação artística, a body art, o happening. Um conhecimento e um tipo de experiência que estava, via de regra, confinada às universidades, galerias e museus, com sua frequência elitizada, teve a chance de ser antropofagizada por jovens da Penha, Perus, Vila Nova Cachoeirinha, Campo Limpo, e outros lugares.


E agora, quem irá construir lugares para se escutar poesia?
Quem irá esperar pessoas na rua com suas frases-bomba prestes a ser detonadas?
Quem irá imprimir sudários profanos?
Quem vai provocar estados-limite no corpo?
Quem vai promover um “beijaço” durante sete minutos, num equipamento da prefeitura?


Outros, espero, dentro do Programa Vocacional. As linguagens de artes visuais, teatro, dança, música, literatura, que se encontram e se misturam no campo da performance, por exemplo podem, é claro, entrar nessa seara. Mas haver uma linguagem dita Artes Integradas provocou a entrada desse conhecimento no programa e garantiu que ele fosse explorado em profundidade. Provavelmente por isso é que foi criada essa modalidade. Agora a tendência é de que o trabalho nesse sentido do encontro das artes seja mais eventual.


Não havia orientação oficial nenhuma de que os encontros em Artes Integradas usassem os repertórios e os procedimentos da performance, do happening, da instalação, da ocupação artística, dos saraus. Mas é evidente que, como são esses os campos em que contemporaneamente se opera o encontro mais intenso das artes, deles se extraia o conhecimento de base para nossa prática. Ninguém começa nada do nada.


E por quê extinguir as Artes Integradas? Não houve explicação.


Hipótese: a constatação de que não deu certo. Nem entro na discussão do que seria dar certo. Há uma pergunta mais evidente a ser feita: os envolvidos diretamente foram consultados? Não. Eu não fui. Outros A.O.s também não. Nenhum Vocacionado com quem trabalho. Nessa hipótese, resta a possibilidade de que tenha havido uma constatação de gabinete de que havia pouca demanda.


Mas seria correto, metodologicamente, em se tratando de uma linguagem experimental, esperar a mesma demanda em números que teatro e dança, por exemplo?

E quais foram as ações do Programa Vocacional para garantir que essa linguagem experimental pudesse dar certo? Observando os anos de 2014 e 2015, percebe-se que nesse último aconteceu uma mudança estrutural no programa que minou as possibilidades das Artes Integradas se desenvolverem no Programa. Até 2014, a divisão em equipes se dava por área. Ou seja, os orientadores de Artes Integradas se encontravam uma vez por semana, podendo discutir seus processos e planejar ações conjuntas. Uma delas foi compartilhar publicamente um precioso material de registro e reflexão da equipe, no blog https://vocacionalartesintegradas.wordpress.com/


A mudança da estrutura organizativa das equipes, que passam a ser territoriais em 2015, diluiu o cuidado com Artes Integradas. Os Coordenadores de Equipe e os Artistas Orientadores de outras áreas tiveram então o foco nas ações em um território da cidade, e em suas próprias linguagens. Não houve a criação de nenhum mecanismo estrutural para que as Artes Integradas tivessem condições de sobreviver a essa mudança, mesmo que, insisto, como linguagem experimental, necessitasse de um cuidado específico, que não pode ser o mesmo das outras.


Foi impraticável realizar um encontro que fosse entre os A.O.s de Artes Integradas durante esse ano. As tentativas realizadas esbarraram nas demandas que cada um já tinha pela estrutura organizativa do Programa: as reuniões semanais no território, as ações no território. Mesmo as assembléias gerais não puderam ser lugar para a reflexão e a mobilização em torno deste problema, pois o foco foram questões mais gerais relacionadas às condições precárias de existência do Programa. Acrescente-se que a comunicação de que a linguagem seria extinta foi repentina e no final do ano, época de mostras, relatórios, ensaios, de um modo que parece ter sido operado para evitar mobilizações contrárias.


Há um dado específico do meu caso no Programa Vocacional que evidencia a falta de cuidado que se teve com Artes Integradas em 2015. Tive minhas duas turmas em dois equipamentos diferentes: o Centro Cultural da Penha e o Teatro Flávio Império. Quase todos os outros A.O.s do Programa, até onde sei, têm suas turmas em um mesmo equipamento. Detalhe: embora próximos, os equipamentos pertencem a micro-territórios diferentes, com duas equipes distintas, dois Coordenadores. Como as reuniões semanais acontecem no mesmo horário, tive de me tornar quinzenal em cada equipe, o que se provou desastroso: difícil entrosamento, desenvolvimento de um pensamento e ações conjuntas.


Mais um detalhe: o Programa esqueceu de avisar o Teatro Flávio Império de que haveria Vocacional Artes Integradas lá. Resultado: não havia espaço e horário destinado. E é claro, não havia inscrições. Foi preciso começar tudo do zero, ou melhor, do menos um, menos dois, menos três... porque primeiro foi necessário antes de mais nada esperar que o Programa e o Equipamento chegassem a um acordo.


Não entrarei em todos os detalhes aqui. Fico apenas com os mais significativos. Dentre esses, o que mais me chama atenção é que Artes Integradas foi tratada no Programa como mais um detalhe. E assim morre uma linguagem. É bastante significativo que, em tempos de crise, de cortes de custos, não se perca apenas quantidade de recursos, mas também, por escolhas políticas, se perca a biodiversidade do pensamento-vida.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Grande Ensaio Equipe Leste 1 - Programa Vocacional 2015

Grande Ensaio Equipe Leste 1 - Programa Vocacional 2015


Em busca do “Coração Denunciador” e a perspectiva emancipatória no Teatro Vocacional

São Paulo, 18 de dezembro de 2015.
Programa Vocacional Teatro – Equipe Centro Oeste – Coord. Gabriela Flores
Biblioteca infantojuvenil Monteiro Lobato
Artista Orientadora: LAÍS MARQUES 





O nosso processo de criação nasceu de um desejo lançado pelas próprias vocacionadas: “queremos explorar a obra de Edgar Alan Poe no Teatro”. Depois de algumas leituras, Coração denunciador foi o conto escolhido. Em apenas quatro laudas um enigmático narrador descreve meticulosamente os passos que o levaram a cometer o assassinato de um velho por causa do modo como esse lhe dirigia o olhar. Nesse intrigante universo, ficção e realidade se misturam continuamente, fazendo com que as palavras, imagens e sensações criadas por Poe fossem exploradas a partir do exercício radical de presença e de invenção, ou seja, num convite aberto às inúmeras possibilidades de criação da cena.





Algumas perguntas iniciais balizaram a investigação: como transformar a matéria-prima literária num experimento teatral? Quais as estratégias para transformar o leitor que se debruça ativamente sobre a leitura do livro, numa plateia co-autora do espetáculo?
Optamos, pois, pelas seis atrizes presentes em cena o tempo todo, numa alternância contínua entre personagens e coro, sendo que a narradora muitas vezes dirigia-se diretamente para a plateia. Assim, muitos dos nossos estudos anteriores sobre composição e coralidade puderam ser resgatados a fim de que uma terminologia comum pudesse compor, passo a passo, nosso repertório expressivo.
Uma intenção era materializar na cena a percepção sonora da narradora, que não se considerava louca, apenas alguém com a audição de fato aguçada. Por conseguir ouvir os batimentos cardíacos da velha já enterrada, a “paisagem sonora” que construímos extrapolava a ficção a ponto de utilizarmos tanto o espaço da sala e o próprio corpo, quanto as palavras em seus infinitos recursos. Inclusive na entrada do público pedimos que eles fechassem os olhos para que toda a introdução do experimento fosse feita a partir dos estímulos sonoros.
O nosso espaço de trabalho, vale pontuar, foi a sala Multiuso da Biblioteca Monteiro Lobato e sua poética, digamos, hiperreal: inúmeras cadeiras empilhadas, lousas, cortinas, grades nas imensas janelas antigas, uma porta barulhenta, o ventilador de coluna, mesas e demais objetos característicos de uma sala de reunião convencional, explorada por nós como uma espécie de site specif  ficcional.





A lição de casa realizada ao longo do processo, contar a história sempre em 1a pessoa a um vizinho ou mesmo a um estranho na rua, contribuiu para que aos poucos as vocacionadas pudessem se apropriar dos detalhes da narrativa com as suas próprias palavras, evitando um decoreba distante dos seus próprios imaginários. Não pretendíamos simplesmente memorizar as palavras exatas de Poe mas, antes disso, compreender suas intenções, sua matemática delicada, as oposições entre luzes e sombras que muitas vezes traziam uma leveza contrastante e muito bem vinda.
Assim, sete quadros foram pouco a pouco se desenhando: “Apresentação”, “A Velha”, “O Ritual”, “A 8a noite”, “O Corpo”, “Visita das Policiais”, “Desfecho”. Cada trecho contou com uma narradora e uma estratégia cênica diferente, surgida no jogo entre o espaço e  os corpos presentes.
Avesso à qualquer realismo cênico, os corpos se emolduravam a partir de alguns princípios básicos da composição, relacionados aos Espaço e ao Tempo e de acordo com as intenções que cada atriz-vocacionada-criadora mantinha com o coro. Lançando mão de ingredientes que se agrupavam anarquicamente, esse coro apoiava-se em procedimentos simples resgatados das orientações anteriores e que conectavam a cena em diferentes perspectivas.
Somado ao único sobretudo revezado entre todas, a base do figurino eram as próprias roupas das vocacionadas que friccionavam a ficção com suas identidades reais: um vestido florido, a camiseta do super herói favorito ou mesmo uma roupa leve e confortável que, no conjunto surpreende pela teatralidade daquilo que é o cotidiano da vida posto na cena.





Preferimos, desse modo, apostar na nossa imaginação, na nossa intuição coletiva, na percepção e na potência formada pelo grupo como os principais ingredientes do processo criativo. Desse processo, ressaltamos ainda os desdobramentos que surgem no embate com a(s) realidade (s) em si,  no estreito diálogo com a cidade, com o equipamento no qual estávamos e as variadas formas de inclusão das diferenças. Se fez presente, sobretudo, a necessidade  maior da indisciplina na arte, de fugir às regras e encontrar dentro do jogo as preciosas iscas de um teatro que faz o impossível tornar-se possível.





Pessoalmente para mim, a Artista-Orientadora desse experimento e vinculada ao programa há 3 anos foi importante perceber que a perspectiva emancipatória lançada nas diretrizes do Programa pode ser compreendida e aprofundada como algo que nasce radicalmente junto com o (aparentemente simples) desejo de se “fazer teatro”, e que esse processo de elaboração maturação é o exercício em si da alteridade. Ele só acontece, portanto, no infinito processo de exploração e reinvenção da própria linguagem artística.





A busca emancipatória, enfim, começa dentro de mim  mesma e a cada encontro com o Outro. Além disso, ela não se conclui na apresentação final do trabalho nem tampouco se esgota no término do nosso precário contrato de trabalho. Essa dimensão político-estética-artístisco-pegadógica de fato nos coloca em ação criadora contínua, integralmente engajada com o que somos, com o que desejamos ser ou, mais ainda, com aquilo que a gente faz com o que fizeram de nós.